segunda-feira, 4 de maio de 2015

A Mulher na Literatura



Falar de Feminismo é declarar guerra à História. Parece-me sempre uma questão perigosa. Quando defendo as mulheres olham-me com estranheza julgando-me uma reaccionária do século passado. Talvez a luta esteja terminada e enterrada juntamente com aquelas que merecem o apelido de feministas. Porém, e mais uma vez através da minha querida Woolf, tenho de questionar esse estado semi-seguro da Mulher.
É evidente que não pretendo dedicar-me ao estatuto da mulher nem tornar este texto uma politiquice. Mas será que a Mulher tem, de facto, um estatuto melhorado? Será que estamos realmente vergadas às evidências de uma sociedade onde a igualdade dos sexos é respeitada? E será que é necessária essa igualdade?
Virginia Woolf, através das suas personagens, criou muitas faces para um mesmo problema. Durante séculos o ser-se “feminino” era reprimido. Nem vou pôr em discussão as questões práticas de uma sociedade machista. A mulher anulou-se. Dedicou-se a outros assuntos sem ser o seu Eu. A sua existência como Mulher. Quando, em pleno século XIX, se torna personagem central da realidade e da ficção ganha um novo estatuto. De mulher doméstica, maternal e senhorial torna-se uma mulher-Mulher. No fundo, passa a ter uma nova consciência quanto à sua feminilidade. Atenção! Devo fazer uma pausa já para advertir o leitor que não é minha intenção destruir aquilo que é, pelo menos para mim, a beleza da mulher. Aí as mentalidades dos séculos passados soam-me mais sérias. A mulher é bela. É bela na sua elegância, no seu estatuto de mãe, no seu estatuto de musa inspiradora do poeta, etc. A minha questão é: por que deixa ela de ser bela quando se torna independente? Piso terreno pouco sólido, bem sei…
À literatura não passa despercebida esta mudança. Por um lado existe Tolstói: Quem é a mulher quando não é Mãe, esposa, amante, mulher de sociedade? Não me parece que ele tome qualquer partido na questão. Suponho que o fim de Anna Karenina seja, numa leitura arriscada, uma forma de provar que o autor não sabe a resposta. Nem a mulher a sabia naquela altura, creio. Por outro lado existem as irmãs Bronte. Catherine Heathcliff, tão dona do seu nariz, é incapaz de ponderar as consequências da sua independência. E até que ponto é ela independente se existe sempre um homem por perto? Já Jane Eyre não é outra coisa senão apenas mulher. Que assume as consequências de uma vida livre de todas as amarras tradicionais. Surge então, já no glorioso século XX, Virginia Woolf e a sua tão aclamada Clarissa Dalloway. Esta é quase o oposto de Anna Karenina. Se Anna não é nada sem os seus estatutos, Mrs. Dalloway tenta fugir a essas classificações. É neste caso que a figura masculina surge vergada à brutal existência da Mulher. Não só à heroína como a todas as outras que a acompanham. Não creio que seja por acaso que apenas morra um homem. Homem esse que é, de facto, Clarissa numa leitura mais concentrada.
De “nada” a mulher torna-se “tudo”. Porém é necessário perceber que ser mulher independente e longe das amarras do lar onde tantas feministas agitam a sua revolução não implica deixar de ser mulher. Daí ser tão interessante o tratamento que todas estas personagens recebem. Todas procuram o respeito. E todos os homens se vergam a essa simples exigência. Através de gestos, de palavras e de sentimentos. Todas até encontrarem Mrs. Ramsay em Rumo ao Farol. Ela, tão cheia de si, sente-se naturalmente mulher e nunca uma estranha nesse papel. Mrs. Ramsay é tudo: mãe, esposa, mulher, amante, intelectual, simples. Abraça todas as categorias; todas as outras mulheres. Sem receios.
Assim, posso, finalmente, chamar à discussão Elizabeth Bennet. Talvez a primeira mulher romântica do feminismo quando este ainda não existia. Há uma oscilação permanente entre a dependência e a independência. Afinal fala-se no século XVIII onde a tradição masculina tem importância exagerada mas consistente. Se por um lado Elizabeth quer a liberdade de sentimentos por outro não procura abdicar do seu estatuto de senhora. Aqui devo considerá-la mais próxima de Mrs. Ramsay. Ambas são sofisticadas de sentimentos sendo sempre fiéis a si mesmas. Talvez pudessem ensinar Clarissa Dalloway a ser feliz. Talvez tivessem evitado a morte de Anna Karenina.
Da ficção à realidade chego ao importante estatuto das senhoras de pena em riste. Falo das escritoras que, ao longo da história, nunca se deixaram intimidar pelos seus esforços. Devo, claro, um especial agradecimento a Jane Austen. Quantas de nós teríamos a sua coragem? Não terá sido ela o grande incentivo desta reviravolta feminina? Não deixo nunca de pensar que todas estas mulheres escritoras (George Elliot, Jane Austen, Virginia Woolf, as irmãs Bronte) tiveram a coragem de ser tudo o que Mrs. Ramsay é. De notar a subtileza com que geriram as casas, os maridos e os filhos a par com uma carreira na escrita que, mais ou menos camuflada por questões óbvias, nunca deixou de ser importante e prioritária.
Hoje em dia a mulher já não se sente a protagonista. Já não a vejo lutar para ser Vista. Não se trata de chamar a atenção. Trata-se de ser mulher no mundo. Os seus sentimentos são deixados ao acaso de um amor impossível e um pouco mal tratado, de um ódio, de uma necessidade. Aquilo que as heroínas procuravam antigamente (e encontravam, atrevo-me a dizer), as heroínas de hoje renegam.
Talvez a culpa seja do mundo. Da velocidade do mundo. Se pensarmos que em Portugal o feminismo tomou as proporções de política e nem sempre de uma necessidade social estou em dúvida se terá, de facto, existido uma consciência de mudança. A julgar pela quantidade de mulheres no poder dentro e fora das nossas fronteiras creio que nos falta a garra feminina para vingar.
Resta-me, portanto, a pergunta infame: quais as fronteiras do feminismo? Terá Simone de Beauvoir razão? Será o feminismo apenas uma questão que a mulher tem de colocar? Será apenas a busca pelo direito ao direito? À escolha? Ou é algo maior e mais cheio de entranhas políticas e tradições arrancadas pela raiz sem lógica ou ponderação? É claro que as consequências do Feminismo existem. A mulher tem tendência a perder o seu estatuto de Senhora. Mas será que o Feminismo pretende, realmente, a igualdade entre os sexos? No fundo, para subir um degrau na justiça da sociedade é ter de abdicar de privilégios que não passam, na verdade, de boa educação? Há, então, alguma tristeza quando penso que não voltarei a conhecer mulheres belas e inteligentes em busca de si próprias. A nossa luta parece terminada. Mas parece apenas. O trabalho precisa ser continuado para que as nossas antepassadas não sejam esquecidas. Para que a sua herança não tenha sido deixada em vão e votada ao esquecimento.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

That Hamilton Woman

Vivien Leigh e Laurence Olivier

Cheguei ao momento em que tenho de explicar o porquê de ter dado ao meu blogue este nome estranho e definitivo. Uma vez que falo sobre cinema e literatura faz perfeito sentido que as minhas raízes assentem num estilo hollywoodesco e clássico: That Hamilton Woman.
Os amantes da História bélica inglesa certamente já terão ouvido falar num tal Lord Nelson, herói e feroz combatente na luta contra Napoleão Bonaparte. As referências cinematográficas são demasiadas e, como não podia deixar de ser, umas datam de 1940 d.C (Durante os Clássicos). O casal Olivier/Leigh decidiu, por bem, retratar a história por trás da História. Existirá sempre um amor profundo, sagrado e incorrecto nestas coisas da História e do Cinema. Vivien Leigh é, claro, Aquela Mulher Hamilton. Que brinca entre a mulher simples e humilde de um homem mais velho e a mulher adúltera e conivente com as artes do amor. Apaixona-se por Lord Nelson (Laurence Olivier) ainda antes de este o ser . A química pretendida está lá. Um daqueles casos em que a realidade e a ficção se cruzam. E este é um dos momentos cinematográficos que destrona um Casablanca com demasiada facilidade.
Uma vez que a história não é sobre Lord Nelson mas sobre a criança adulta que se pavoneia no seu sorriso frágil tipicamente VivianLeighnesco será de esperar pouca acção no campo de batalha. A intriga adensa-se por isso. Percebemos que não foi através das armas que Napoleão foi vencido e sim através de poder curativo e corajoso de um beijo. Seria menos dramático de outra forma e a poesia deste filme é o que me fascina.

Os diálogos, meus caros leitores, são belos e sofisticados. Poesia em bruto. Assistimos a luxuosas e rápidas tiradas que davam para transcrever num belo livro, encaderna-lo e coloca-lo numa prateleira. Porque o cinema também deve ser poesia, Vivian Leigh (que já me havia conquistado na sua juventude de Scarlett O’Hara) surpreende pela doçura majestosa de quem sabe o que sofreu a verdadeira Lady Hamilton. Seria de esperar um final feliz após as controversas negações da fama, da vitória e do amor. No entanto, Ema Hamilton é deixada sozinha esperando impaciente um amante que nunca regressará. Que ficou no campo de batalha de Trafalgar, vitorioso mas morto. Se pensarmos bem só assim uma história de amor poderá ser verdadeiramente poderosa. 



Caty.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

A Rainha Sou Eu


Vitória.

Por si só o nome revela a força daquela que o exibe em condições únicas. Afinal foi rainha “por não existir mais ninguém”. E nós, anos depois, agradecemos esse vazio. Vitória de Inglaterra não se limitou a ser rainha. Não se limitou, sequer, a ser mulher.
 
Numa altura em que o feminismo ganha estatuto é particularmente interessante observar uma mulher que, não deixando a obstinação de lado, governou por anos e anos sem nunca vacilar. sessenta anos exactamente. A par com ilustres nomes da sociedade mais antigas ou mais recentes(recordemos as irmãs Bronte, George Eliot e recuando até encontrar uma Jane Austen sedenta de inovação), Vitória nunca deixou as suas obrigações por cumprir. Elevou a noção de familia a um novo patamar mostrando ao mundo que uma mulher pode ser mãe, esposa e governante sem descurar qualquer um dos papéis. E não é isso que ainda hoje se discute? Que ainda hoje serve de batuta para as vidas agitadas da sociedade actual? Entristece-me que Rainhas e Escritoras, Pintoras e Cientistas tenham descoberto aquilo que ainda é desconhecido à mulher fechada nas suas noções de escolha com medo de vacilar e de falhar apenas porque não é capaz de tudo. De não ter direito a tudo. E a nada, até. Direito à escolha acima de tudo.
Cruzei-me com um livro bem português sobre uma rainha bem inglesa. Vitória de Inglaterra parece ser um hino não só à mulher que governou por sessenta anos aquele país como uma prova da coragem de todas as mulheres ao longo dos séculos. Quem não recorda Isabel, a Rainha Virgem que levou Inglaterra aos limites da coragem e honra? Ou D. Isabel, mulher de D. Dinis, que não era Santa mas diplomata e confidente apontando com sensatez o caminho daquele que era, em boa verdade, o legítimo rei de Portugal? Reconheço, com orgulho de mulher, a quantidade de excelentes mentoras do progresso feminino. Quando ainda a palavra feminismo não existia. Lutaram, amaram, sofreram e sempre abriram caminho por entre as cortes, as sociedades e as muitas teorias de que ser mulher é ser-se fraco.
Isabel Machado vem escrever-nos que não foi assim com Vitória nem foi assim com todas as mulheres que cruzaram o mundo e os seus mundos. Sem elas seríamos vazio. Sem a doçura, a compustura e, por vezes, a maldade não existiria futuro.
Caminhamos através das vaidades da juventude, o amor (pois só houve um sufiecientemente forte para fazer vacilar a soberana), a familia e o poder. Desde que Vitória se torna Sua Majestade até ao seu ultimo suspiro somos invadidos por arrepios, lágrimas e risos cortantes. Alegra-nos o dia ler aquelas tão sábias palavras. Como pode uma mulher só albergar tanto da vida? Uma mulher apaixonada pela vida, pelos sentimentos, pelo ser-se humano. Vitória levou deste mundo inúmeras aprendizagens. E nós com ela aprendemos a ser mais e melhores. A ansiar por tudo o que a vida nos possibilita sem fechar os olhos a nada. Nem mesmo ao sofrimento. Porque também ele faz parte da vida.
Vitória de Inglaterraé uma bonita homenagem à Rainha. Mas, acima de tudo, é uma homenagem a todas as mulheres que, como a própria autora, se sacrificam todos os dias para dar um pouco de si aos outros. Orgulho-me de escrever estas linhas imaginando que sem elas jamais as poderia escrever e saborear. Afinal ser Mulher é importante. Existe beleza e delicio-me em saber que, naquele século, já era belo ser-se Mulher e ter direito à escolha. Ter direito a ser tudo. Ser Rainha, Imperadora, Mãe, Mulher, Esposa. Direito a ser-se Mulher.

Caty.

 

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Pensar os Livros.


 
Tenho andado com algumas questões relativamente ao que me propus fazer aqui. Resolvi escrever um texto que me ajudasse a pensar sobre a Literatura e sobre a Arte enquanto forma de expressão.

A arte move-nos e rodeia-nos. Seja qual for o tema, a forma, a verdade é que somos, todos os dias, transportados por essa forma de comunicação. O que é, de facto, estranho uma vez que não existe uma definição de Arte. Ou seja: haverá um limite para a Arte? Precisará de um limite?

Estas questões foram-me colocadas aquando da leitura da biografia de Virginia Woolf. Apercebi-me que é possível sermos críticos em relação ao que lemos mas não é isso que define a escrita. O melhor exemplo é o facto de Woolf não ter simpatizado nunca com James Joyce e a sua obra Ulisses e esta ser uma obra-considerada-prima do Século XX. Então, questiono-me: como pode um escritor julgar outro? O que é, afinal, boa literatura? Qual o critério?

Posso, evidentemente, tratar todo este tema através das inúmeras teorias da literatura. Posso seguir a lógica de Aristóteles e abandonar todos os textos que não sigam as suas regras. Posso deixar que Burke me influencie. Ou posso esquecer todos eles e deixar a opinião pública julgar todas as obras literárias do mundo. Mas será viável deixar nas mãos do "gosto pessoal" a história da literatura? Talvez ficássemos à beira da anarquia. Talvez deixasse, a certo ponto, de existir Literatura. Mas não é o que temos actualmente? Os livros são criados e aceites por uma sociedade sem princípios artísticos viáveis. A opinião pública das massas passou a ser o único critério para as editoras. Se antes era necessário qualquer coisa de intelectual, de sofrido (nem que fosse o tal sofrimento da página em branco que levou tantos escritores à loucura), hoje é apenas necessário que se obrigue o leitor a esquecer a realidade e embrenhar-se numa qualquer ficção cheia de lugares comuns e falsas verdades. Pior: o leitor escolhe essa facilidade como se fosse um mal menor já que é "obrigado" a ler.

À pergunta "o que procuras num livro?" saberia responder sem vacilar: procuro-me. Mas será essa a vontade dos outros? Daqueles que se deixam guiar por uma literatura infantil e cinzenta, sem preocupações relevantes para o avanço da mentalidade e da própria sociedade? Parece-me que já ninguém lê para ouvir os ensinamentos de um Outro. Para conhecer o mundo e conhecer-se a si próprio. Lêem porque faz bem ao Ego. Lêem porque não encontram nada de melhor para fazer. Já ninguém diz ao ler: nunca tinha pensado nisto. Porque não há nada de novo. Nada do que é dito nas páginas dos livros actuais é, de facto, novidade. Será medo de encarar a vida? A verdade? O nosso "Eu"? Será isso que nos faz procurar levezas e simplicidades? O medo de olhar para dentro e nos reconhecermos não no herói mas no vilão? Woolf soube preencher o imaginário dos seus leitores com personagens reais. O leitor e a personagem passam a ser um só. Identificam-se um com o outro. Não há heróis. Não há vilões. Há pessoas. Há realidades escondidas no dia-a-dia. Mas já ninguém quer saber de Virginia Woolf. Já ninguém quer saber de Tólstoi, sequer, a menos que seja para preencher um imaginário descuidado. Como quando somos crianças e queremos ser uma Branca de Neve ou uma Cinderela. (Oh, como seria bem vindo um comentário a dizer como estou errada. Que, afinal, Woolf ainda faz parte dos nossos dias. Que Jane Austen ainda é uma realidade…)

Pergunto-me qual o segredo do sucesso dessas histórias sobre vampiros, por exemplo. Será a perspectiva da imortalidade? Será o tal "amor impossível e para a eternidade"? Se assim é por que razão está Bram Stoker tão esquecido? Não é ele o autor de um dos maiores romances de sempre? Um amor que não é para sempre mas para a eternidade? Encontrei em "Drácula" toda a Humanidade. E, talvez por isso, não seja lido com a mesma facilidade de um outro qualquer livro de vampiros simpáticos e pacíficos. Novamente, o medo. O medo de olharmos para a Humanidade e repararmos nos "vampiros" sedentos de sofrimento e vingança que não esquecem nem perdoam. O medo de sermos menos do que aquilo que julgamos ser.

E, se não é o medo, será a preguiça? Como poderá o cinema ser uma arte tão bem trabalhada e cativante e a Literatura ficar tão esquecida? Não começou esse mesmo cinema por ser um story-telling? Não é o cinema um contar infindável de histórias? Algumas até bastante relevantes como obras principais do desenvolvimento humano? Então sugiro que o cinema possa nutrir uma vantagem ainda não conquistada pela Literatura: a imagem. Para mim não há diferença. Mas consigo compreender a facilidade da imagem visualizada em detrimento da imagem contada e imaginada. Ler é ser-se cego. Estou consciente desse facto e apraz-me sabê-lo. O autor sempre me sussurrou ao ouvido aquilo que a imaginação lhe ditava e eu, de olhos fechados e mente aberta, criei sempre o meu próprio quadro, a minha própria imagem. O cinema dá-nos menos possibilidades. A única visão é a do realizador. Todas as outras são deixadas de fora e o espectador não pode interferir.

A preguiça de fazermos, em conjunto com o autor, o seu livro é demasiado grande para a nossa sociedade. Entristece-me sabê-lo. Saber que o mundo vive de momentos criados pela impassibilidade. Que já ninguém se dá ao trabalho de dar ao seu mundo novos mundos. Estamos estagnados. Estamos cada vez mais vazios. Estamos cada vez menos humanos necessitados de evoluir. De conhecer. De criar. A Arte não tem, de facto, limites. Nem o artista. Somente a Humanidade.


Caty.


quinta-feira, 20 de março de 2014

"August: Osage County"


Este filme, adaptado de uma consagrada obra da Broadway poderia, como muitos outros, ser um falhanço. A julgar pelos Óscares da Academia de Hollywood, os Globos de Ouro, os Bafta, os SAG Awards, entre outros, seria de esperar um total falhanço de representação, argumento e realização. Mas não.
Começa bem: Clooney é o produtor. John Wells o realizador. Chamaram o verdadeiro autor da peça (Tracy Letts) para a adaptar ao cinema. E, por fim, esperando uma agitação que salvaria o ambiente, chamaram Meryl Streep. O resultado: um grande filme.
O tema não é diferente de tantos outros. Problemas familiares. Mas, desta vez, ao jeito de comédia negra. Doença, suicídio, juventude problemática, traições, divórcios. As personagens já existem antes do filme começar, o que dá ao respeitoso argumentista um toque de genialidade. No fim do filme elas continuam a existir e sem finais felizes ou infelizes.
Dou uma especial atenção aos primeiros minutos de filme. Começa com T.S. Eliott só porque é preciso um poeta para abrir o espectáculo que se segue: “A vida é demasiado longa”. Quem o cita é Bev, o homem cansado e calmo que desaparece para um desastroso suicídio logo após nos cumprimentar. Conta uma história a uma empregada que terá sempre um papel calmo e importante durante todo o filme e, em especial, no fim. Mas é Violet, ou Meryl Streep, quem rouba o protagonismo (nesta e em todas as outras cenas). Frágil, cruel, má, sarcástica acabamos a sentir-nos constrangidos com tanta loucura e ódio ao mundo. A sua figura pálida, os cabelos curtos, o andar descoordenado relembram uns anteriores filmes como One True Thing ou Sophie’s Choice. Em todos eles vemos majestade. Neste vemos a representação levada ao extremo. Abro um parêntesis para dizer uma verdade que me anda a balouçar na mente desde que vi o filme: será possível que tenha escapado à Academia a impressionante prestação desta Dama do Cinema? Será possível que, em tantos prémios, Meryl Streep tenha ficado sempre atrás de uma interpretação que, ainda que maravilhosamente bem conseguida por parte de Cate Blanchet em Blue Jasmine, em nada se equipara a este excelente trabalho? Bem sei que Mrs. Streep já tem anos de nomeações e consagrações mas será isso motivo para a  esquecer e fechar os olhos ao seu talento natural para compreender as suas personagens?
Posso alertar-vos para o facto de existirem outras personagens. E todas elas são fortes. Existem as irmãs reprimidas, Karen e Ivy (Juliette Lewis e Julianne Nicholson), conscientes da sua falta de carinho por parte da mãe, maridos adúlteros, Bill (Ewan McGregor), que lutam para manter a ordem mental e moral de uma filha de quase quinze anos, Jean (Abigail Breslin), que pretende destruir a sua visão ingénua do mundo, existem namorados estranhos, Steve (Dermot Mulroney) e tios gentis casados com tias que erraram no passado e continuam a errar por se adorarem ouvir, Charlie e Mattie Fae (Chris Cooper e Margo Martindale). Depois existe Barbara: Julia Roberts. A filha que é demasiado parecida com a mãe para o perceber e demasiado crítica para entender a vida.
Talvez o filme tenha ganho por ter Meryl Streep e Julia Roberts como mãe e filha. A épica cena em que Roberts se atira a Streep tem tanto de cómica como de dramática. Mas deixem-me que vos diga: é aquele jantar de luto por um pai “desaparecido” a cena que dá ao filme um toque de genialidade macabra. A qualidade dos diálogos, a realização bem coordenada e inteligente e as interpretações reais daqueles actores fazem desses minutos o momento mais empolgante de todo o filme. O elenco está todo reunido e telefones tocam, pessoas dão graças e divagam, pessoas distraem-se. A tipica comédia negra, o humor subtil e disparatado. A vida tal como ela é: um excelente filme!

terça-feira, 4 de março de 2014

Servidão Humana, por Somerset Maugham


 
O título original é Of Human Bondage. Que podemos traduzir por Servidão Humana. Este é um daqueles casos em que o título, por si só, define todo o livro.
Confesso que tinha uma grande expectativa relativamente a este livro. E não me refiro ao espectacular trabalho da Asa que me “obrigou” a comprá-lo mal olhei para aquela capa tão bonita e tão arrojada. Mesmo que concluísse que este seria um livro para nunca mais ler, pelo menos, ficaria bem na estante.
De volta à história. Esta narrativa pretende ser o “Era uma vez” de Philip Carey. Demorei algum tempo até perceber o fundo desta personagem. Considerei-o, por fim, uma espécie de Herói (caso seja possível definir assim as personagens neste controverso romance). Defino-o assim porque tanto o odiei como o compreendi. Ele é arrogante, tímido, carente e indeciso. Desde o momento em que somos introduzidos na sua vida que o sabemos um pouco complexado. Tem um pé aleijado e toda a sua infância e adolescência é conduzida através desse problema. Como se fosse o pé a definir-lhe a personalidade e as acções. Este é um livro sobre a vida e sobre o “ser humano”. Existem personagens indecisas, boas, más, sossegadas, mesquinhas. A própria humanidade de Philip é questionada (e, atrevo-me a dizer, definida) pelo leitor que, como na vida real, o adora e o detesta. Reconhecemos um pouco de D. H. Lawrence em Filhos e Amantes com a realidade sempre a saltitar na nossa frente: simples e problemática.
O primeiro passo é conhecermos o seu mundo: é órfão e foi criado por um tio religioso e uma tia que merece uma certa atenção por ser simpática e moralista ao mesmo tempo. Portanto, é fácil concluir que tudo na sua ainda curta vida merece a atenção da fé, da moral, do “ser bom”. Talvez aqui, Somerset se tenha excedido (e digo-o no bom sentido: aquilo que nos acontece quando somos crianças marca-nos para sempre). Todos nós sofremos alguma humilhação na escola. Por mais insignificante que seja todos nós coramos por algum motivo. E Philip corou, chorou e nunca mais esqueceu o episódio. Quebro a rotina de contar a história por existir um momento importante que nos irá acompanhar e a Philip até ao fim do romance: o momento em que o jovem, confuso e impregnado em teorias religiosas, descobre que Deus não existe. Poderia não ter qualquer importância mas esta é a grande transformação da personagem. Se antes resolveria a sua vida com uma carreira religiosa e cega, agora não consegue evitar as necessidades da alma: a pintura e o conhecer o mundo. O antes e depois da personalidade de Philip surge com uma primeira servidão: a servidão a Deus. No entanto, esta é racional, deixando que a sua fé seja permanentemente abalada por questões lógicas e práticas: ao pedir a Deus que lhe cure o pé, através de rezas, e não vendo qualquer mudança da parte daquele a quem devota horas e esforço, decide que ele não existe
Surge-nos, finalmente, e confesso que após uma enorme espera, Mildred. Uma personagem com demasiada relevância para a sua personalidade. E questionamo-nos: como é possível que uma pessoa tão pequena tenha tanta influência na vida de Philip. A verdade é que ela o leva a um novo patamar da vida: a loucura. Sim, arrisco-me a usar estas palavras pelo simples facto de que alguém tão cego só poderá estar a provar uma certa loucura. O que espanta no romance é que todas as outras mulheres são tratadas com um certo desdém e altivez. O próprio Deus é posto de lado quando não cumpre com as suas obrigações. Mas tudo muda no instante em que Mildred é a única a não estar interessada em Philip. Esta mulher é uma espécie de “Embaixadora da Sofisticação” falsificada, comentando a sua classe e postura quando, em boa verdade, não passa de uma pessoa extravagante com pretensões de Senhora. Engraçado (ou desastroso) é o facto de ela nunca se afirmar como personagem. Mostra-se desinteressada por tudo. Nada lhe agrada. Por muito que o nosso herói se esforce, ela não o quer. Ela maltrata-o, desdenha o seu amor, faz pouco dele. Apenas quando precisa, e mesmo assim tudo é com a pontinha dos dedos e uma expressão de nojo, se agarra a ele tentando mostrar a sua simpatia.
No fundo, as personagens funcionam como uma só: mesmo separados, Mildred está sempre por perto. Moldando Philip, obrigando-o a pensar coisas que de outra forma não existiriam na sua cabeça. E o nosso Herói parece até apreciar essa maldade e arrogância da parte desta jovem estranha e antipática. Como se fosse um complemento à sua personalidade. O livro torna-se sujo, cinzento e feio quando aquela relação se desenvolve. A vida de Philip é minimamente apresentável quando está sozinho e demasiado estranha quando está com Mildred. E nós, ingénuos leitores, chegamos a sentir-nos traídos. A convivência entre eles é barulhenta, suja e reles. Não conseguimos sentir orgulho no rapazinho que vimos crescer e lutar pela sua vida. Mildred é a destruídora da vida. Talvez seja, até, a própria Vida. E só suspiramos de alívio quando, após umas 300 páginas, o nosso Herói, triunfante e crescido, decide escrever o final daquela controversa relação.

 

 

 

Maugham, Somerset. Servidão Humana. Lisboa: Edições Asa, 1ª edição (Novembro 2009)

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

"Romance" por Clarence Brown


Capa do filme Romance (Europa)
Protagonizado por Greta Garbo e Gavin Gordon
Realizado por Clarence Brown
1930
 
Este é um daqueles filmes sagrados. Ainda hoje penso nele como um bálsamo para a alma.
Romance é um filme sobre o Amor. Onde Garbo é Diva duas vezes. Diva porque Rita Cavallini é a Diva da Ópera capaz de matar de amores corações ditos fortes e corajosos. E Diva porque prova que ser actriz é ser outra coisa mais sagrada do que a realidade da vida.
Começo pela história: temos um jovem. Na verdade existem dois. Toda a história é um flashback, uma tentativa de um velho cavalheiro em fazer o seu neto recuperar a consciência. Harry, o jovem que no presente quer casar com uma cantora e um sábio bispo que é , no passado, o jovem Tom Armstrong (Gavin Gordon). O filme recua para o momento em que Tom abomina a etérea necessidade humana em perder-se no divino. E, no instante em que tudo lhe parece real e sisudo, aparece aquela que irá transformar a sua vida. O momento em que Rita é anunciada pelo rico Cornelius Van Tuyl (Lewis Stone), o primeiro amante conhecido da cantora e uma espécie de narrador, sempre presente e a guiar-nos por esta viagem amorosa, não é o momento da sua aparição. Lembra-nos um pouco Laura ou Gilda, nos Noirs em que a estrela chega sempre atrasada quando já todos sabem que ela aí vem. Rita chega subindo a enorme escadaria num brilhante vestido, denso e comprido. De notar que este é, talvez, o grande trabalho de Adrian, o estilista que soube defender a figura de Garbo como ninguém.
Mesmo quando a Diva de Ópera chega nada é dito. Sabemos que é ela porque só ela estará no centro do Universo, rodeada de cavalheiros encantados e mulheres invejosas. Mas não estamos em vantagem face ao jovem emocionado e embriagado pela beleza de Rita. Conhecemo-la ao mesmo tempo que ele. Só temos a vantagem de não estarmos tão equivocados como ele quanto ao seu verdadeiro nome. Aliás, é através desse equívoco que todos reconhecemos a prova que faltava: aquilo que julgamos ser a verdade dos nossos corações pode facilmente ser dissipado. O momento decisivo em que os dois se conhecem é, sem dúvida, o primeiro de muitos momentos. E é sempre importante explicar que Tom se apaixona por um engano. E Rita deixa-o ir ao encontro de uma mentira brincando com ele. Ela nunca assume a sua identidade até o jovem ter a certeza que foi apanhado num deslize amoroso.Toda a narrativa evolui como se fosse encenada. Nada é subtil. Tudo é exagerado e dramático.
É nesta produção de Clarence Brown que o cinema sobre o Amor ganha novos contornos. Em que tudo é dito e retirado como se vivessemos em indecisão permanente. O desapaixonado pela vida apaixona-se perdidamente por Rita. Tudo morre para fazer nascer a loucura doentia do Amor juvenil. Mas é Rita quem toma as rédeas da relação. Porque, se por um lado, também ela se deixa envolver pela doçura da paixão, saberá, por outro, que nada é para sempre. Muitos menos quando é ela a protagonista desta história. Estamos sempre à espera que alguém morra de amor. Rita talvez tenha morrido quando, naquela imagem final, tão idêntica a Rainha Cristina, a vemos morta e fixa em sofrimento silencioso. Só nos salvamos das lágrimas porque o jovem Tom nos ajuda fechando a porta. É o reconhecimento do fracasso humano. Tom, que estava disposto a tudo por esta paixão, apercebe-se que de nada vale morrer por amor e dedica-se a sustentar apenas uma ideia desse amor.
Dou especial ênfase à realização final:  a imagem de Rita/Garbo, de pé junto à lareira, estática  e pesada. Talvez dos melhores momentos fotográficos em que, sozinha, a realização conta uma história. Uma tendência entre os realizadores que  trabalharam com Garbo : o rosto da Esfinge Sueca vale toda uma produção.
A narrativa é igual a tantas outras. Será, na verdade, uma espécie de necessidade, de ponto incontornável nos filmes de Garbo: a mulher fatal e inatingível que leva à loucura os jovens inseguros e ingénuos. Mas surpreende pela vivacidade. E, especialmente, surpreende pelo twist final: aquilo que esperávamos ouvir da boca do bispo não é aquilo que ele se prontificar a mostrar: o arrependimento de ter deixado Rita Cavallini sozinha e um amor enraivecido desvanecer surge nesta história quando esperávamos uma conclusão mais sensata. Creio que não se assemelha ao típico filme de 1930. Talvez hoje fosse um sucesso. Ou não o seria pois não teria Garbo. E um filme de Garbo sem Garbo é um filme vazio. Este é o filme em que Garbo, nomeada para um Óscar de Melhor Actriz, se revela magnífica. Romance não pretende contar uma história. Pretende ser uma explicação daquilo que Greta Garbo representa. E nem o sotaque agreste nos faz desistir. Afinal já em Flesh and the Devil vimos a verdadeira faceta da actriz. Esse filme que a lançou para o mundo das estrelas que nunca morrem. Facto é que, fechando os olhos aos agrestes conflitos entre o realizador e a estrela, Clarence Brown e Greta Garbo entendem-se e reconhecem-se quando outros ainda hoje se perguntam: Who is Garbo?

 

Talves gostassem de saber:

·         Lewis Stone já havia trabalhado com Garbo em Woman Of Affairs e , em 1932, voltam trabalharjuntos em Grand Hotel

·         Para o papel de Tom Armstrong, Garbo decidira escolher Gary Cooper. No entanto, a Warner Brothers não o pôde emprestar à MGM ficando Gavin Gordon com o papel.

·         Clarence Brown é o realizador que mais trabalhou com Garbo: Flesh and The Devil, Woman of Affairs, Romance, Anna Christie e Anna Karenina. No entanto, a relação entre os dois ficou tremida após o final de Romance e só em 1935 são propostas tréguas.

·         Adrian foi sempre o estilista de Garbo, presenteando todos os seus filmes com inovadores vestidos chegando a lançar um estilo para a imagem de Garbo.
 
Caty.